Muito disseminada na sociedade brasileira, a usucapião, popularmente conhecida como “usucampeão”, na verdade, caracteriza-se como um procedimento extremamente burocrático, ainda que, após o início da vigência do Novo Código de Processo Civil, seja admitida a sua tramitação na esfera extrajudicial. Assim, nesse post, nosso propósito é trazer algumas ponderações que julgamos ser pertinentes.
De início, para melhor entender o instituto, compete trazer à luz o seu conceito doutrinário. Destarte, também chamada de “prescrição aquisitiva”, pode-se afirmar, de maneira simples, que o tempo é o principal fator que determina a possibilidade de aquisição do direito na usucapião. Portanto, é uma forma de adquirir a propriedade de coisas móveis e imóveis por meio do exercício da posse durante certo lapso temporal. E este, então, é determinado pela lei. Contudo, por ora, vamos nos ater somente à prescrição aquisitiva de imóveis.
1. Função social da propriedade
A respeito do viés de defesa da função social da propriedade, a qual pode ser observada na usucapião, faz-se mister trazer à colação o entendimento do eminente doutrinador SILVIO RODRIGUES que assevera:
a usucapião dá prêmio a quem ocupa terra, pondo-a a produzir. É verdade que o verdadeiro proprietário perdeu seu domínio, contra a sua vontade. Mas, não é injusta a solução legal, porque o prejudicado concorre com sua desídia para a consumação de seu prejuízo. Em rigor, já vimos, o direito de propriedade é conferido ao homem para ser usado de acordo com o interesse social e, evidentemente, não o usa dessa maneira quem deixa sua terra ao abandono por longos anos.
Conforme mencionado acima, a usucapião é uma forma originária de aquisição de propriedade. Não é possível, assim, dizer que aqui ocorre a transmissão da propriedade. E desse modo, a única transferência identificada é a de uma situação de fato (posse) para de direito (propriedade).
Concluída essa breve introdução ao instituto da usucapião, enfim, vamos discorrer um pouco a respeito das espécies previstas no ordenamento jurídico brasileiro.
2. Usucapião Extraordinária
Conforme dito anteriormente, a usucapião é dividida em espécies previstas em lei. A primeira que abordaremos é a extraordinária. Ela leva esse nome, pois a combinação de elementos dispensa que o possuidor apresente justo título e que esteja imbuído de boa-fé, posto que aqui, a presença deles é presumida. E tampouco se admite
A usucapião extraordinária está prevista no art. 1.238 do Código Civil, a saber:
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
Destarte, para que possa ser manejada a usucapião extraordinária, precisa estar presente a posse mansa e pacífica em relação ao proprietário do imóvel, que, sabedor da situação, não a questiona, ficando inerte.
2.1. Requisitos da usucapião extraordinária
No que tange ao lapso temporal, ocorreu a diminuição deste no atual diploma legal. Diferentemente dos 20 anos exigidos no Código Civil de 1916, hoje o prazo para a aquisição da usucapião extraordinária é de 15 anos. E se o bem for utilizado como moradia habitual ou para realização de obras ou serviços de caráter produtivo, tais como plantações, esse prazo cai para 10 anos.
Cabe salientar que a interrupção do prazo da prescrição aquisitiva é ônus do proprietário caso ingresse com ação reivindicatória. Se a propositura da referida ação ocorrer após o prazo da usucapião, o possuidor poderá apresentar uma defesa denominada exceção de usucapião.
Outros dois requisitos precisam ser observados para que haja a usucapião extraordinária, quais sejam:
animus domini; e
objeto possível a ser usucapido.
Eles dizem respeito, respectivamente, a que o possuidor deve agir com ânimo dono e que o bem deve ser apto à usucapião. Nesse passo, qualquer imóvel particular, seja urbano ou rural, pode ser objeto de prescrição aquisitiva, salvo quando houver desrespeito à metragem mínima estipulada por lei federal.
3. Usucapião Ordinária
A usucapião ordinária possui requisitos idênticos aos supramencionados para a usucapião extraordinária, todavia, são acrescidos ainda a necessidade de justo título e boa-fé.
A prescrição aquisitiva na modalidade ordinária, encontra-se prevista no artigo 1.242 do Código Civil, in verbis:
Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
Como pode ser percebido, na usucapião ordinária o prazo diminui substancialmente, ou seja, passa a ser de 10 anos. No caso de aquisição onerosa baseada em título registrado e posteriormente cancelado, contudo, o prazo passa a ser de 5 anos.
4. Usucapião Constitucional ou especial urbana e rural
A Constituição Federal de 1988 trouxe outras duas espécies de usucapião, quais sejam, a constitucional urbana e a constitucional rural.
4.1. Usucapião especial urbana
A usucapião especial urbana encontra-se disposta no art. 183 da Carta Suprema. E para distingui-la da usucapião especial rural, pegaremos emprestadas as lições do brilhante doutrinador Luiz Antonio Scavone Junior, que elenca os seus requisitos específicos, nos moldes demonstrados a seguir:
a) posse mansa e pacífica, sem oposição;
b) lapso temporal quinquenal, podendo haver soma das posses do antecessor, desde que o atual possuidor seja herdeiro legítimo e já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão;
c) animus domini especial, ou seja, o possuidor deve agir com ânimo de dono em relação ao imóvel que pretende usucapir, nele residindo e, ademais, não ser proprietário de outro imóvel, urbano ou rural e não ter usucapido de forma especial anteriormente; e,
d) por fim, objeto constituído de imóvel urbano particular que não ultrapasse 250m².
4.2. Usucapião especial rural
Por outro lado, quando se fala em usucapião especial rural, o mesmo doutrinador, traz os seguintes requisitos:
a) objeto hábil, que, nesse caso, é o imóvel rural particular de até 50 hectares;
b) posse mansa e pacífica;
c) lapso temporal quinquenal; e,
d) animus domini especial que inclui a necessidade do possuidor ou sua família tornar a propriedade produtiva – o que nada mais é que outro aspecto da função social consagrada na Constituição –, estabelecer sua moradia além de não ser proprietário de qualquer outro imóvel, urbano ou rural, seja em que município for.
Ainda no que diz respeito às modalidades especiais de prescrição aquisitiva, vale ressaltar que, caso o possuidor não possa utilizá-las, lhe resta a opção de se fundamentar nas outras espécies de usucapião, mormente porque as espécies previstas na constituição, não excluem as demais.
5. Usucapião Coletiva
Disciplina no art. 10 do Estatuto da Cidade, essa espécie tem como hipótese a situação de uma área ocupada por população de baixa renda, que pode ser usucapida, no prazo de cinco anos, desde que os possuidores não sejam proprietários de outros imóveis, rurais ou urbanos e ainda que a referida área ultrapasse os 250m².
Nesse sentido, após a aquisição da propriedade, forma-se um condomínio especial e indivisível, sendo que somente será permitida a divisão após a urbanização do imóvel usucapido, sendo obrigatória a deliberação de 2/3 dos condôminos.
6. Usucapião por abandono de lar
O Código Civil, em seu artigo 1.240-A, prevê a hipótese do usucapião por abandono de lar, nos seguintes termos:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade dividida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
7. Procedimento da ação
Passada a análise das espécies possíveis para a aquisição da propriedade originária de um imóvel por meio da prescrição aquisitiva, cabe discorrer acerca do procedimento a ser observado na tramitação da usucapião.
A grande novidade gira em torno da possibilidade de processar o usucapião diretamente perante o cartório do registro de imóveis da circunscrição do local onde se localiza o imóvel, conforme preceitua o artigo 216-A da Lei nª 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos) que traz um extenso rol de documentos que devem instruir o pedido na esfera administrativa.
Além disso, o provimento nº 65 do CNJ, também estabelece diretrizes que devem ser observadas nos serviços notariais e de serventia de registro de imóveis, quando se trata de procedimento de usucapião extrajudicial.
Apesar de significar um avanço e mais uma etapa do movimento que se segue em relação à desjudicialização do direito brasileiro, a verdade é que ainda existe muita incerteza em torno do procedimento extrajudicial da prescrição aquisitiva, o que acaba por não causar o efeito inicialmente esperado, ou seja, a desburocratização das infindáveis ações no judiciário, mesmo porque a rejeição do pedido extrajudicial não impede o ajuizamento de ação de usucapião.
Até a próxima.